Não só através da luta pelos seus direitos económicos (que é sobretudo resistência à tentativa de implementação final e aprofundamento da precariedade laboral nos portos portugueses e das suas consequências), alicerçada numa consciência de classe irredutível perante a arrogância e tom intimidatório do patronato e dos seus braços político-ideológicos, mas também da sua presença constante nas manifestações que se sucedem dentro e à margem do movimento sindical, os estivadores são um exemplo prático de como a organização e a coesão de um grupo em torno das suas afinidades e interesses e, simultaneamente, a abertura desse grupo a outras formas de estar e ser, – abertura feliz, por ser simpática e por ser tacticamente eficaz – são indispensáveis para enfrentar a proximidade da repressão e a sensação de impotência, desespero e desamparo que muitas vezes se apodera de quem combate na rua, na prisão, no bairro ou no trabalho (e em qualquer parte) todas as formas de opressão que reinam debaixo do céu capitalista, cada dia mais opressivo.
Mas para que este exemplo vingue, quer dizer, para que ele possa ser aproveitado por muitos – mesmo por aqueles que de um modo geral desconfiam das peripécias limitadas ao mundo [do trabalho VS capital] de hoje –, é necessário atingir o ponto de irradiação daquilo que se julga exemplar.
Para extrair da luta dos estivadores algo que pode ser comum a todos, é totalmente inútil cair no fetichismo das identidades e das formas [de luta] que aqui ou ali se confundam com elas: no caso uma identidade operária específica dos trabalhadores portuários, que de modo fetichista poderiamos idealizar enquanto expressão de uma cultura operária/guerreira supostamente em vias de extinção, facilmente redutível a uma estetização masturbatória de petardos e slogans mais hardcore que o costume.
A questão não é contudo fazer a esconjuração das identidades, nem sequer impedirmo-nos de desfrutar da estética que nos pareça mais fixe ou com que nos sintamos melhor, mas tão simplesmente desembaraçarmo-nos dos fetichismos que impedem objectivamente a radicalização das coisas ou, o que vai dar ao mesmo, atrasam a concretização de situações à altura da radicalização que o próprio contexto económico-social já é. Isto é, que a luta dos estivadores, quer dizer, o que torna possíveis os petardos, a desenvoltura com que se lida com a bófia e o resto, tem muito menos a ver com tomates e testosterona do que com aquilo que é a base de qualquer movimento social, passado ou presente, com perninhas para andar: a SOLIDARIEDADE.
Porque apenas se pode disfrutar de uma luta se existir solidariedade. Não existindo solidariedade, o que existe, tomando o seu lugar na luta, é o “aguenta-te à bronca!”. Porque nos tempos que correm tornou-se perigoso que alguns estejam na luta como quem está na roda gigante, calma e confortavelmente aguardando o ponto mais alto para ter a melhor vista, a mais científica ou céptica, sobre os conflitos sociais, enquanto outros vão na montanha-russa, sendo sacudidos e atirados de um lado para outro pela máquina capitalista, enquanto outros ainda se recusam a pôr os pés no parque de diversões, apesar de serem tão afectados pelo resultado dos conflitos como os directamente envolvidos.
Por isso só existem duas saídas: ou nos divertimos todos juntos, ou vamos juntos todos bardamerda.
Os estivadores deixam aos vários futuros (não a todos) o seu parque de diversões de caminhos que se bifurcam.
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. O pintor «oferece o seu corpo», diz Valéry. E, com efeito, não se vê como poderia um espírito pintar. É emprestando o seu corpo ao mundo que o pintor transmuta o mundo em pintura.» Merleau-Ponty
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. Curso de Artes Visuais - Multimédia (Universidade de Évora)
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. Faculdade de Ciências Sociais e Humanas (Universidade Nova de Lisboa)
. «Aquele que traz no coração o cadáver da infância, há-de sempre educar almas já mortas.» Raoul Vaneigem
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