Segunda-feira, 3 de Setembro de 2012

De como se auto-decapitar com um corta-relvas ou outros objectos pouco cortantes VS Organizemo-nos Chaval@s.

Organizemo-nos Chaval@s

 

Olhando de relance, apenas até aos Pirenéus porque a preguiça é muita (e está um calor do caraças), aqui nos confins da Península Ibérica.

Nas Asturias mantém-se uma greve por tempo indeterminado, que não deve ser medida pelo tamanho do desespero (que não deve ser pouco) das mulheres e homens que têm o seu meio de subsistência ameaçado, porque apenas pode ser mantida, na forma e no conteúdo que lhe deram os trabalhadores, por estar profundamente enraizada numa cultura operária que transporta o sentido da dignidade humana, revestido e recheado pela memória e pela sua história: uma história de sacrifícios, de conflitos, de uma vida fodida (experiência de classe), mas também de Revolta e de Revolução (consciência de classe), e através de uma solidariedade que muitos julgavam enterrada para sempre, juntamente com a própria ideia de Classe, pelo menos na Europa Ocidental, entre os escombros das ultimas derrotas da década de setenta/oitenta, quando os avanços das sucessivas vagas conservadoras e ultra-capitalistas, e uma agressividade ideológica cada vez mais unilateral rumo à mercantilização de tudo, quase desarticularam por completo o antigo movimento operário organizado – e com ele a força das suas reivindicações – e fizeram dispersar (mas não desaparecer) os núcleos mais radicais (ou pelo menos as suas raízes), as associações formais e informais de indivíduos, que quiseram manter viva a chama de todo o património histórico, património comum, antigo e recente da luta de classes, e portanto a memória da revolta, pronta a ser reactivada.

Dirão alguns que o (interesse do) movimento dos mineiros asturianos e o regresso das barricadas (e dos cortes de estradas, dos lança-foguetes improvisados e das marchas) é apenas “arqueológico”: o estertor espectacular e apoteótico do que resta do “velho proletariado” (de um espaço económico pós-industrial) que se recusa a desaparecer sem ser em grande estilo; uma última representação do poder de fogo dos antigos sujeitos políticos da Revolução (assim com letra maiúscula); que acontecimentos do mesmo tipo se podem repetir, até tomar maiores proporções, ali e em outros lados, à medida que a imposição de austeridade for fazendo mais vítimas, sem que isso signifique outra coisa que não o repisar simbólico dos que já não tem nada a perder (ou a ganhar) aqui. E também pode ser que se enganem os académicos e os cépticos, visto que o futuro não está escrito e todos os desenlaces serem possíveis quando se abre o baú dos processos e dos desejos, das ideias e das tácticas e enquanto se possa dizer: Que se foda se não pudermos vencer, talvez nos possamos vingar!. Este (e outros) “que se foda”, são aliás a única maneira de cortar com o presente, como o foram com outros Presentes passados, e de iniciar qualquer esboço de futuro aos que chegaram tarde de mais à festa da Democracia, do Mercado e do Estado Social europeus: isto é, nós. Ou devemos contentar-nos com os restos?

Seja como for, as acções contundentes e despidas de preconceitos formalistas (ou pelo menos de formalidades cidadanistas) praticadas pelos mineiros (e pelos que solidariamente se juntaram ao seu protesto), tiveram já o condão de arejar as bafientas e bizantinas discussões sobre o modo como se deve estar nas lutas - resistência pacifica vs acção directa violenta, etc – e deixar essa questão em aberto, para ser respondida com o que se pode e deve fazer nas ruas, e com as solidariedades mais ou menos (in)formais, que se formem a cada momento. Quando se desbrava esse território de falsas antinomias torna-se mais fácil – e não uma questão identitária entre “vândalos anarquistas” e “progressistas pacíficos”, por exemplo - que outros, menos afoitos e/ou experientes, mas igualmente dispostos a lutar pelo que lhes pertence, se organizem para lutar e disfrutar das lutas com os meios a que se dispuserem deitar mão, sem que se aliene necessariamente aqueles que por esta ou aquela razão jamais abandonarão a via exclusiva da “não-violência”: talvez assim nos possamos animar (e contagiar) reciprocamente, quer dizer, solidariamente.

É mais ou menos evidente que nas terras de Espanha, o “exemplo dos mineiros” está pelo menos a ter um efeito animador em quem está decidido (ou em vias de se decidir) a combater o capitalismo (ou mais timidamente a presente austeridade, o que é e não é o mesmo). Em Valência, trabalhadores ocuparam os estúdios de uma estação televisiva à hora de jantar o espectáculo da informação – experiência que já tinha sido realizada na Grécia – utilizando os meios espectaculares por excelência à disposição, invertendo-os para dar uma dose de realidade social aos espectadores (até que foram interrompidos pela emissão de um documentário, esperemos que igualmente pedagógico, sobre o fundo do mar). Em Madrid, após a manifestação oficial dos mineiros que realizaram uma marcha de protesto de centenas de quilómetros desde as suas regiões até à capital de Castela, milhares de pessoas – para dar continuidade e expressão, e prestar solidariedade, aos mineiros que regressavam a casa – mas também para impulsionar a sua própria (forma de) luta – recusaram-se a voltar para casa, e ficaram nas ruas, algumas combatendo a polícia anti-distúrbios, outros a fazer o que bem entenderam com as suas vozes e os seus corpos, rejeitando, todos, a ideia de que as manifestações tenham recolher obrigatório, ou que um dos objectivos das lutas sociais seja obter (das forças da ordem) medalhas de bom comportamento.

Longe de querer amalgamar vários protestos de origem e motivações diversas, que a qualquer hora veremos divergir pelas contradições existentes entre si, quer dizer, à medida que as lutas amadurecerem, isto é, se se conseguirem manter, e se possa verificar que estratégias se tornaram dominantes (ou que tiveram mais fôlego), gostaria de pensar que no seu conjunto, e neste momento, podemos constatar nestas lutas um movimento de unificação social, não no sentido teórico, identitário ou institucional (portanto da criação de um super-novíssimo movimento social), mas no sentido de um processo de convergência entre tácticas de luta operária radical e as aprendizagens feitas em tempos mais recentes (desde as primeiras movimentações alter-globalização, depois de Seattle a Génova, nos movimentos das acampadas e dos Occupy) de onde as recentes afinidades anti-capitalistas – por vezes à margem desses próprios movimentos e da sua retórica oficial – se começaram a querer levantar do chão, não porque são mais fixes do que as outras, mas porque os meios mais soft e mainstream se revelam todos os dias, senão de todo ineficazes, pelo menos tão ineficazes quanto as tácticas mais “violentas” que possamos considerar. Talvez essa síntese, se é que existe, nos possa demonstrar que não somos obrigados a permanecer petrificados em posições reformistas ou agarrados a plataformas de acção estritamente focadas na introdução de mudanças qualitativas no sistema social existente, pela via de tornar visíveis certas causas (ambientalismo, pacifismo etc); que se pode desenterrar o machado de guerra sem que isso signifique um impulso suicida recalcado, ou um fetiche bué macho pelo riot porn, ou uma afirmação sectária qualquer, mas uma prova de vida e um novo animo para a luta de classes: desta forma já libertada do lastro ideológico de uma narrativa emancipatória, que nas suas horas mais tristes não passa da glorificação do trabalho (por mais horrível que possa ser) ou da fé na “cidadania activa” (por mais pequeno-burguesa), e assente na própria Revolta posta em prática em toda a sua diversidade estratégica.

De como se auto-decapitar com um Corta-Relvas ou outros objectos pouco cortantes.

Em Lisboa e no Porto – e muito a contraciclo do que mais recentemente se tem aprendido em diversas “manifestações inorgânicas” (com e sem cargas policiais) nas ruas, nas ocupações da casa de São Lázaro e da Escola da Fontinha, das sucessivas imposturas policiais durante as pequenas greves que vão acontecendo, etc – representantes do civismo puro e sem gelo erguem-se para exigir a moralização da vida político-institucional da República (como se isso invertesse, ou ajudasse sequer, a alterar o rumo das políticas económicas vigentes e as suas consequências sociais, ou que iluminasse um palmo à frente dos nossos narizes a escuridão que temos à nossa frente); seja através de “acções de despejo” para ministros corruptos pontoadas por arremedos de ética e decência ou de barragens de petições a que se perde a conta; seja através de tentar cavalgar a mínima indignação desta e daquela figura publica integrada no actual regime/sistema. Longe de querer fazer juízos de intenção sobre o que move os dinamizadores dessas iniciativas, que deverá ser exactamente aquilo a que se propõem, o que preocupa é precisamente os que tomam parte delas imaginando-lhes poderes que visivelmente não têm, e que os próprios organizadores, julgo, não têm a audácia de preconizar.

Entendamo-nos, e não nos tomemos uns aos outros por parvos: já ninguém acredita sinceramente que os mecanismos legais/constitucionais estão em pleno funcionamento (mesmo sem fazer caso da sua função de controlo social, que também exercem), ou que, não estando, possam ser reactivados pelo mero exercitar das suas carcaças ocas, ou que se possa desmontar um governo (ou as suas políticas) peça-a-peça, como se fosse um motor velho. O que está em causa não é se somos ou não campeões da porrada com a bófia, ou pensar que alguém descobriu a fórmula certa de (re)activar as lutas sociais ou que tem no bolso esquerdo um pacote de soluções revolucionárias para tudo, mas que pessoas com pouca (alguma ou muita) experiência de activismo, actuem como se todos os meios tivessem o mesmo poder para dissolver o actual conformismo e para desenvolver com coerência uma resposta à altura do que os próprios consideram um ataque sem precedentes aos direitos e liberdades conquistados, ou o que resta deles.

Não resistir à tentação de tentar massificar mediaticamente os protestos, abdicando da sua radicalidade, nivelando o tom do protesto com o que se possa pensar ser um senso-comum de indignação latente, terá inevitavelmente o efeito contrário ao que se deseja. Desde logo porque é precisamente a radicalidade, e a diversidade do tom com que se protesta, que tem permitido o crescimento e a manutenção dos protestos mais fortes e consequentes que têm acontecido na Europa, e não o grau do seu bom senso, que tem dado oportunidade a uma radicalização posterior. O contrário disto é fazer-se passar por ingénuo ou tentar deliberadamente manipular uma indignação qualquer, federa-la ao mínimo pretexto e ganhar uma plateia onde despejar uma retórica que com sorte conquiste mais alguns adeptos, mas que em grande parte se torna duplamente desmoralizadora e desmobilizadora: afastando ao mesmo tempo os que julgavam estar perante algo de carácter moderado e reformista e aqueles que esperam, e querem mais, e que podem ser muitos mais do que muitos julgam (e que estão constantemente acossados pelos que os isolarão à primeira mijadela fora do penico): assim se gera desânimo e desconfiança recíprocos.

As manifestações tipo Corta-Relvas – do passado do presente e do futuro – sendo reactivas, estão à partida ultrapassadas pelos acontecimentos, porque servem apenas para moralizar a ordem social vigente a seu tempo (seja ela qual for) sem a interromperem, sem abrir caminhos, porque são facilmente recuperadas por ela, e porque não podem conter o descontentamento das camadas não-burguesas da população – económica e vitalmente fodidas muito para além das filhas-da-putice público-privadas deste ou daquele ministro, ou dos pontapés infligidos na democracia pelos seus próprios supostos ou impostos representantes. Isso desqualifica-as, ridiculariza-as ou retira-lhes legitimidade? Não. Apenas as torna exemplares de um activismo que reafirma a sua impotência e o seu curto alcance a cada ocasião; querendo crescer sozinho expandindo a sua moralidade. Que alguns que o sabem e que não desejam este simulacro, e outros rituais do género, pretendam ainda assim que se veja neles uma espécie de viagra da luta social realmente necessária, é que é pouco estimulante. Sem ironia, prefiro a ginástica, ou ver chover sindicalistas profissionais em cima dos automóveis dos ministros: às vezes chove.

engatilhado por Semeador de Favas às 00:32
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