Independentemente da análise estratégica e táctica que ocorra a cada um fazer acerca da atitude dos manifestantes [“pacíficos e não pacíficos”] que participaram na manife de dia 14 de Novembro em Lisboa (no dia da Greve Geral), importa desconstruir um certo discurso produzido em diversos textos publicados nas redes sociais por pessoas que foram vítimas da carga policial e das detenções arbitrárias que a sucederam. Um discurso que, alimentado pelo refluxo do pânico e da adrenalina que ainda percorrem o sistema dos que sofreram na pele, muitos pela primeira vez, a brutalidade policial, pode conduzir, se mal digerido ou oportunisticamente aproveitado, a um perigosíssimo crescimento de tendências para o auto-policiamento e auto-repressão do movimento de combate ao presente autoritarismo capitalista.
Preocupa-me o seguinte: a facilidade com que muitas pessoas estão a aceitar ou a caucionar o discurso oficial, que visa como sempre dividir para reinar e reinar para manter a ordem, prestando-se a isolar – através da condenação abstracta da “violência” – os manifestantes mais aguerridos do corpo “pacífico” da manifestação, como se estes se tratassem não de companheiros com formas de luta (e de estar) diferentes das suas, mas como corpos estranhos (a meia-dúzia de “radicais”, “profissionais da desordem”, etc) que todos os movimentos sociais poderiam expelir do interior das suas acções e entregar de mão beijada às garras dos órgãos de repressão do estado.
A irrepreensível lógica maniqueísta, ainda que bastante mais tímida entre “manifestantes anónimos” do que entre os figurões da esquerda institucional que têm muito a perder, que divide a malta em bons e maus manifestantes, assenta contudo em premissas completamente falsas. Desde logo porque tende a ver as “formas violentas” de protesto como uma especialização de determinados grupos mais marginais, isto é, como uma questão de estilo e de mau feitio prejudicial ao protesto, e não como expressões de revolta, mais espontâneas e caóticas ou mais organizadas, que se podem desenvolver a partir de todos os sectores da sociedade afectados pelo actual ciclo de proletarização e empobrecimento. Depois, porque parece dar a entender que apenas seria necessário controlar os mais combativos, impedindo-os de se expressar e existir, para esvaziar os ânimos dos mais exaltados – que são visivelmente cada vez mais – que já não conseguem ouvir apelos à calma e à ordem sem soltarem uma gargalhada de desprezo.
Entendamo-nos quanto a este ponto. Tudo o que se conseguiria através de uma colaboração tácita com a bófia no que diz respeito à circunscrição do que se entender serem “agitadores violentos”, isto para além da óbvia equivalência a bufo e canalha, seria empurrar o pessoal que vai dando passos pequenos mas firmes da raiva pura para alguma coordenação com sectores politizados para uma posição de desespero e desprezo para com os movimentos sociais (atitude que seria, diga-se, totalmente justificada).
Sendo a síntese entre a raiva pura e a politização (substâncias que cada um doseia de acordo com as suas necessidades e/ou possibilidades) antídoto contra o tédio e contra as cristalizações ideológicas paralisantes, esta quebra de solidariedade entre manifestantes mais e menos pacíficos – quebra que sempre e em qualquer parte é a morte de ambos os artistas – teria ainda como consequência um extremar de posições que levaria a um regresso ao sectarismo identitário que apesar de tudo se tem conseguido diluir nos últimos tempos num caudal de protestos bastante heterogéneo: heterogeneidade que se deve também em boa parte a ter sido abandonada aquela cena um bocado ridícula das manifestações parecerem cortejos fúnebres em que ninguém podia mijar fora do penico sem levar nas orelhas, ou aquela outra não menos patética dos “ultra-revolucionários” não lá porem os pés por tudo aquilo tresandar a folclore de neo-hippies requentados.
A violência será sempre um tema fracturante, mas ou se discute sem preconceitos e dogmas, ou se continua a iludir entre outros o seguinte facto. A polícia não carrega ou deixa de carregar sobre manifestantes em face do seu comportamento ser mais ou menos combativo, mas sempre que as condições no terreno são favoráveis ao sucesso de uma carga. Por tudo isto, discutir se uma carga policial é culpa destes ou daqueles manifestantes, se não é uma pura perda de tempo, é pelo menos um convite à desunião. Não uma desunião qualquer, mas uma desunião que não é fruto da crítica mas do medo induzido pela estratégia que as autoridades delinearam tanto de um ponto de vista operacional quanto comunicacional, isto é, no que diz respeito à informação e contra-informação debitada nos média pelos ideólogos do costume.
Finalmente, a inoperatividade total da lógica da batata. A policia usa (usou sempre que lhe mandaram) agentes infiltrados (e quando calha provocadores), vai daí os lógicos indignados exercem a sua arte: se os provocadores violentos são polícias infiltrados, então todos os manifestantes violentos são polícias. E se não são polícias fazem o trabalho sujo da polícia.
Se é para irmos por este caminho então eu socorro-me de uma deliciosa bujarda que a boa e velha communarde, Louise Michel, um dia largou: “nós adoramos ter agentes provocadores no partido, porque eles propõem sempre as moções mais revolucionárias.”
Graçolas à parte. Quando a conversa chega a este ponto então a táctica do medo atingiu plenamente o seu objectivo, que é o de desestabilizar emocionalmente, desorientar e virar os manifestantes uns contra os outros. Dito de outra maneira, quando a paranóia se instala está o caldo entornado. A partir desse ponto já não é possível coordenar nada, a solidariedade cessa, o protesto vivo e verdadeiro (qualquer que seja a sua forma) estiola e morre, e no seu lugar fica uma carcaça que pode ser manipulada a bel-prazer dos porta-vozes da polícia e a quem aproveita a ideologia dos “brandos costumes”:
a Nós não.
Não só através da luta pelos seus direitos económicos (que é sobretudo resistência à tentativa de implementação final e aprofundamento da precariedade laboral nos portos portugueses e das suas consequências), alicerçada numa consciência de classe irredutível perante a arrogância e tom intimidatório do patronato e dos seus braços político-ideológicos, mas também da sua presença constante nas manifestações que se sucedem dentro e à margem do movimento sindical, os estivadores são um exemplo prático de como a organização e a coesão de um grupo em torno das suas afinidades e interesses e, simultaneamente, a abertura desse grupo a outras formas de estar e ser, – abertura feliz, por ser simpática e por ser tacticamente eficaz – são indispensáveis para enfrentar a proximidade da repressão e a sensação de impotência, desespero e desamparo que muitas vezes se apodera de quem combate na rua, na prisão, no bairro ou no trabalho (e em qualquer parte) todas as formas de opressão que reinam debaixo do céu capitalista, cada dia mais opressivo.
Mas para que este exemplo vingue, quer dizer, para que ele possa ser aproveitado por muitos – mesmo por aqueles que de um modo geral desconfiam das peripécias limitadas ao mundo [do trabalho VS capital] de hoje –, é necessário atingir o ponto de irradiação daquilo que se julga exemplar.
Para extrair da luta dos estivadores algo que pode ser comum a todos, é totalmente inútil cair no fetichismo das identidades e das formas [de luta] que aqui ou ali se confundam com elas: no caso uma identidade operária específica dos trabalhadores portuários, que de modo fetichista poderiamos idealizar enquanto expressão de uma cultura operária/guerreira supostamente em vias de extinção, facilmente redutível a uma estetização masturbatória de petardos e slogans mais hardcore que o costume.
A questão não é contudo fazer a esconjuração das identidades, nem sequer impedirmo-nos de desfrutar da estética que nos pareça mais fixe ou com que nos sintamos melhor, mas tão simplesmente desembaraçarmo-nos dos fetichismos que impedem objectivamente a radicalização das coisas ou, o que vai dar ao mesmo, atrasam a concretização de situações à altura da radicalização que o próprio contexto económico-social já é. Isto é, que a luta dos estivadores, quer dizer, o que torna possíveis os petardos, a desenvoltura com que se lida com a bófia e o resto, tem muito menos a ver com tomates e testosterona do que com aquilo que é a base de qualquer movimento social, passado ou presente, com perninhas para andar: a SOLIDARIEDADE.
Porque apenas se pode disfrutar de uma luta se existir solidariedade. Não existindo solidariedade, o que existe, tomando o seu lugar na luta, é o “aguenta-te à bronca!”. Porque nos tempos que correm tornou-se perigoso que alguns estejam na luta como quem está na roda gigante, calma e confortavelmente aguardando o ponto mais alto para ter a melhor vista, a mais científica ou céptica, sobre os conflitos sociais, enquanto outros vão na montanha-russa, sendo sacudidos e atirados de um lado para outro pela máquina capitalista, enquanto outros ainda se recusam a pôr os pés no parque de diversões, apesar de serem tão afectados pelo resultado dos conflitos como os directamente envolvidos.
Por isso só existem duas saídas: ou nos divertimos todos juntos, ou vamos juntos todos bardamerda.
Os estivadores deixam aos vários futuros (não a todos) o seu parque de diversões de caminhos que se bifurcam.
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