Quarta-feira, 26 de Setembro de 2012

O “bicho-troika” demonstra uma vez mais aos alunos mais esquecidos como se extrai a mais-valia: século XIX motherfucking style.

 


 

Às vezes, o pessoal mais céptico em relação a quaisquer teses, sensibilidades ou opiniões, anticapitalistas, acusa o pessoal que as afirma radicalmente – de analisar (e criticar), o actual momento social e económico, através de instrumentos teóricos e conceptuais que seriam uma espécie de lentes especiais desenhadas para observar de perto, ou à distância, a sociedade capitalista industrial do século XIX e “fazer saltar” as suas mais grosseiras características: para, sádica e masoquisticamente, seguir uma ordem de ideias (marxista, bakuninista, comunista, anarco-comunista, etc) tão desajustada ao capitalismo do presente, afirmam eles, que apenas nos podem conduzir à criação de monstros imaginários ou, na melhor das hipóteses, a grotescas caricaturas da sociedade capitalista dos nossos dias.

Ora, quando as instituições europeias e globais do capitalismo, forma-troika, sugerem ao governo troikista grego que imponha aos trabalhadores um aumento da semana laboral, e da própria carga horária diária, reduzindo os períodos de descanso entre turnos, a redução dos subsídios de desemprego e da sua extensão – tudo isso sobre um desemprego que galopa estigmatizando os que não o têm e sobrecarregando os que o têm, entre outras medidas que atingem os serviços sociais da comunidade (e a sua capacidade de resposta às necessidades) –, são essas mesmas instituições que se encarregam de desenhar a própria auto-caricatura do capitalismo tardio, com traços de regras laborais dignas do século XIX; tornando assim cada vez mais irresistível a afirmação que verbera por toda a parte: “não somos nem mais nem menos radicais do que os tempos que vivemos”.

Assim, a iminência dos retrocessos sociais aplicados em todos os países em que a receita da austeridade faz o seu caminho (na qual o governo português é, a todos os níveis, o campeão incontestável), mostra-nos como a violência da história desaba sobre as nossas cabeças; e como alguns postulados da crítica da economia política e da acção anticapitalista não perderam uma gota da sua pertinência (ainda que a sua teoria e práticas estejam em permanente actualização). Houve um tempo – principalmente durante a segunda metade do século XX, durante a qual o Estado (do bem-estar) Social foi sendo edificado, a diferentes velocidades e profundidades nos diversos países europeus – em que foi necessário pensar por que motivo o desenvolvimento capitalista não tinha conduzido ao empobrecimento progressivo da classe trabalhadora – como Marx previra –, e que viria a conduzir necessariamente à revolução social que derrubaria a ordem capitalista. A resposta a esta contradição (que levou muitos abandonar o campo anticapitalista e outros tantos a usarem-se dela para demonstrar o “pecado original” das posições revolucionárias) e, finalmente, para justificar o capitalismo e a ele aderirem plenamente, foi a de que Marx (e os diversos marxistas e marxismos) – e por tabela todas as tendências revolucionárias – extrapolara, como tendência do capitalismo do berço à cova, partindo da forma da exploração do trabalho da sua época, que era conduzida – como descreve Anselm Jappe, no seu ensaio sobre o contributo teórico de Guy Debord – por uma “burguesia que continuava empenhada em defender formas na verdade pré-burguesas, como os baixos salários ou a exclusão dos operários dos direitos políticos, formas que o próprio movimento operário identificava equivocamente com a essência do capitalismo.”

Esta actualização, que Debord (e a Internacional Situacionista) levaram a cabo, bem como as análises efectuadas pela revista Socialisme ou Barbarie, ao longo dos anos 50 e 60, em França – concluía que o capitalismo se tinha finalmente, e de uma vez por todas, libertado do lastro da servidão pura e dura, e que a partir desse momento se poderia arriscar uma nova teoria, concluindo que a tarefa não seria já confrontar a burguesia com a miséria do proletariado (e o proletariado com a sua miséria económica), mas sim o proletariado com a própria miséria da sua vida quotidiana integrada no capitalismo avançado: e aí procurar as forças necessárias para o desencadeamento de uma nova vaga revolucionária (que confrontasse o capitalismo nos seus novos limites, que não eram já apenas os do lugar de cada qual, e das classes como um todo, no sistema de produção, mas também o modo de destruir na sua totalidade o novo e complexo sistema de alienação, que era o reverso da medalha das conquistas sociais). Esta actualização, que até podemos considerar a mais radical e sintonizada com o seu tempo (ao fim ao cabo o nosso tempo), está desactualizada (se tivermos ambos os pés no Presente e os olhos no Futuro). A não ser que a fé num hipotético “carácter transitório da crise”; numa milagrosa reforma moral (humanista) do capitalismo, ou uma sobrevalorização da sensibilidade social (inteligência estratégica) dos manutensores do capitalismo, se sobreponha à consciência dos retrocessos que já estão em marcha: sob a forma de uma proletarização violenta, em sentido estrito e clássico, de grandes camadas da população; despindo-as dos meios económicos que lhe permitiriam reproduzir com dignidade o seu modo de vida (o que em austeritarês se chama “viver acima das suas possibilidades”), para as colocar em carne viva na montra da exploração e da humilhação social: sob forma de trabalho precário, salário de merda, subsídio ou pensão de miséria, ou da caridade.

Em Portugal, a manobra que incluía a expropriação Estatal de salários e a sua transferência para o Capital, sob a forma do acréscimo violento da taxa da segurança social a ser suportada pelos trabalhadores está, fruto do levantamento popular massivo contra tal descaramento, morta: outras continuam de pé e outras tantas se preparam. Se é verdade que esta medida vez estalar de vez o verniz do “consenso social” que os braços políticos do capitalismo em Portugal tanto gostam de usar à lapela enquanto rastejam aos pés dos seus credores – que querem fazer passar por credores de todos os que agora queriam a “comer e calar” para sempre, e não só a estes mas também aos seus filhos e netos ainda por nascer –, também é verdade que fica claro, e já ninguém o consegue ocultar com jeitinho, que o capitalismo entrou por vias desesperadas no intuito de acumular capital: e que esse desespero (ou necessidade capitalista, se preferirem) é mais forte do que o “consenso social” que, de repente, se torna um empecilho. Se mais provas fossem necessárias para verificar as contradições em que se afunda o capitalismo é ver os grandes patrões tugas a erguerem-se contra o governo que pagaram para ter, porque sabem – e nisso são realmente mais sensatos do que os ultracapitalistas que hoje se encontram aos comandos do Estado – que não podem sugar indefinidamente o sangue à manada sem que esta mais tarde ou mais cedo diga, “basta!”. A mesma percepção têm também os ideólogos e especialistas que ainda ontem queriam que se espremesse sem piedade os rendimentos e os direitos dos trabalhadores (porque eram um crime de lesa economia de mercado), e hoje já acham que assim também é de mais. Será isto, sensatez? Não, são simplesmente as elites a chafurdar na lama da crise no capitalismo que elas próprias criaram, fazendo o que podem para salvar a sua pele (despindo-a da anterior doutrina) e para evitar que a falta de tacto deste ou daquele governo resvale para uma crise do capitalismo. É pânico: a água gelada da consciência das contradições do sistema a chegar aos tomates da burguesia: que a maré continue a encher.

Aparentemente, o Capitalismo com que nos defrontamos hoje, vai – se o seu movimento não for sabotado – corroer de tal forma as bases materiais da nossa sobrevivência (e as formas políticas, mais ou menos hipócritas mais ou menos democráticas, que a revestem), que já não poderemos contra-atacar apenas com uma “revolução da vida quotidiana” ou com os instintos inatos que nos dizem que a Vida (e Viver) não é bem isto que nos servem; que devemos juntar a essa centelha de liberdade o combustível que é a recusa de nos podermos vir a tornar uma espécie de escravos modernos. Esta síntese pode impedir que nos afundemos em dogmas economicistas e em militâncias parvas, mas também de fazermos de conta que estamos nos anos 60, 70, 80 ou 90 – na França, em Itália, na Grécia ou em Portugal – consoante as boas ondas de cada período contestatário da época; em que as teorias revolucionárias mais apelativas (e que ainda o são) eram simultaneamente as mais certeiras (e que agora talvez já não são). Cabe-nos afinar ,uma vez mais, a pontaria.

O que dizer portanto, hoje, quando se tornou quase um lugar-comum admitir que o capitalismo mundial possa impor de novo um (ciclo de) empobrecimento das classes não-burguesas como modelo económico (em chavão austeritarês descodificado: empobrecer para poder competir), não só nos espaços em que tal nunca deixou de existir (nos polos de manufactura do chamado “terceiro mundo” e nas “economias emergentes”) mas também em “países periféricos” no coração dos grandes centros da burocracia capitalista (e que com ele partilham, aparentemente, o mesmo espaço político, económico e cultural?

Que o capitalismo perdeu a cabeça, e com ela a elasticidade (que os revolucionários do passado não podiam de facto prever) que lhe permitiu adaptar-se às exigências de melhoria dos níveis de vida das populações; poder de recuperação que lhe permitiu, aliás, evitar revoluções sociais que o superassem ou destruíssem, ao mesmo tempo que lhe possibilitou a expansão e a criação de um exército de consumidores médios que ainda sustenta a sociedade da mercadoria tal qual a conhecemos?

Que “o capitalismo” se julga de tal forma bem apetrechado, no que diz respeito aos meios e técnicas de repressão, que já nada tem a temer de qualquer disrupção social nos seus domínios? Que a ideologia secou por completo a memória das revoltas e das conquistas passadas (e o seu saber-fazer), implantando por toda a parte, senão o conformismo total, pelo menos um inconformismo que apenas se expressa sob formas alienadas (isto é, sob formas ideológicas derivadas do próprio capitalismo)?

Ou será que uma crítica radical do mundo existente não nos conduz necessariamente a verificar no presente ciclo de empobrecimento uma reactivação por automatismo – isto é, independentemente do que os agentes do capitalismo pensem saber e conhecer sobre o todo da sociedade que gerem – de mecanismos de exploração e acumulação que estariam apenas a ser usados a meio-gás, num contexto propício à paz social (que nunca deixou de ser uma guerra latente com focos de conflito dispersos), mas de que maneira nenhuma configuraria a forma final – ou sequer a forma mais pura e moderna – do modo de produção e exploração capitalistas? A entender que o Capitalismo encontrou a sua forma de escrita-automática, com a qual pode libertar o seu estado interior, isto é, a irracionalidade e a barbárie reprimidas: que apologistas liberais, neoliberais ou simples reaccionários passaram vidas a tentar racionalizar, que apenas pode ser mitigada à força de lutas sem tréguas?

Ou talvez isto:

Estamos barricados no domicílio dos nossos corpos, não por iniciativa própria, mas porque nos fecharam as portas de acesso ao presente, esse que se apresenta bafiento, embaciado e contaminado pelo vício d'um sistema que se nos impõe como um Deus incombatível, omnipresente e com tiques de malvadez.

É perante este quadro, e nele, que temos de agir; mas porque a hipocrisia não é a nossa especialidade académica e não se ergue em nós qualquer possibilidade de com ele compactuar é, em primeiro lugar, dentro de nós que o confrontamos quando procuramos reequilibrar-nos após cada queda por este providenciada; depois, há que calibrar as armas, treinar a pontaria e disparar contra todos os alvos visíveis (não se preocupe o SIS, pois não se tratam tais alvos de humanos!). Porque é disso que se trata, de uma guerra pela dignidade, pela justiça, pela progressão da vida, da humanidade, do equilíbrio. E toda a história se escreve através do combate incansável de gerações inteiras que se viram nesta mesma situação perante um sistema que lhes não serve. As portas só a elas se abriram quando pequenas grandes batalhas foram vencidas.

Este é o ponto fulcral de que todos devem tomar parte (que de consciência já todos estamos fartos!). A sociedade em que “vivemos”, e não me refiro aqui somente à geograficamente limitada sociedade portuguesa, é doente, toxicodependente, paranóica, vazia de sentidos. As vistas curtas que a alimentam como se a história tivesse já chegado ao seu fim como se, de agora em diante, apenas fosse aceitável a reprodução de um passado fracassado, exigem uma ruptura profunda que se abra à Vida, e isto, só é possível com a participação activa, audível, efectiva de cada indivíduo; não o indivíduo individual e individualista, mas o indivíduo colectivo, aquele que transporta em si a capacidade de gerar, de gerar a diferença e a alternativa – esse conceito tão em voga que de tão pouco espaço-tempo tem usufruído para que se autoinvente sequer. Sem que a invenção possa dar lugar à criação materializada de uma nova realidade, se negarmos esta necessidade primária da vida conjunta, pouco restará que valha a pena.


                                                          Semeador de Favas; Cagarripa, 2012.

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Segunda-feira, 3 de Setembro de 2012

De como se auto-decapitar com um corta-relvas ou outros objectos pouco cortantes VS Organizemo-nos Chaval@s.

Organizemo-nos Chaval@s

 

Olhando de relance, apenas até aos Pirenéus porque a preguiça é muita (e está um calor do caraças), aqui nos confins da Península Ibérica.

Nas Asturias mantém-se uma greve por tempo indeterminado, que não deve ser medida pelo tamanho do desespero (que não deve ser pouco) das mulheres e homens que têm o seu meio de subsistência ameaçado, porque apenas pode ser mantida, na forma e no conteúdo que lhe deram os trabalhadores, por estar profundamente enraizada numa cultura operária que transporta o sentido da dignidade humana, revestido e recheado pela memória e pela sua história: uma história de sacrifícios, de conflitos, de uma vida fodida (experiência de classe), mas também de Revolta e de Revolução (consciência de classe), e através de uma solidariedade que muitos julgavam enterrada para sempre, juntamente com a própria ideia de Classe, pelo menos na Europa Ocidental, entre os escombros das ultimas derrotas da década de setenta/oitenta, quando os avanços das sucessivas vagas conservadoras e ultra-capitalistas, e uma agressividade ideológica cada vez mais unilateral rumo à mercantilização de tudo, quase desarticularam por completo o antigo movimento operário organizado – e com ele a força das suas reivindicações – e fizeram dispersar (mas não desaparecer) os núcleos mais radicais (ou pelo menos as suas raízes), as associações formais e informais de indivíduos, que quiseram manter viva a chama de todo o património histórico, património comum, antigo e recente da luta de classes, e portanto a memória da revolta, pronta a ser reactivada.

Dirão alguns que o (interesse do) movimento dos mineiros asturianos e o regresso das barricadas (e dos cortes de estradas, dos lança-foguetes improvisados e das marchas) é apenas “arqueológico”: o estertor espectacular e apoteótico do que resta do “velho proletariado” (de um espaço económico pós-industrial) que se recusa a desaparecer sem ser em grande estilo; uma última representação do poder de fogo dos antigos sujeitos políticos da Revolução (assim com letra maiúscula); que acontecimentos do mesmo tipo se podem repetir, até tomar maiores proporções, ali e em outros lados, à medida que a imposição de austeridade for fazendo mais vítimas, sem que isso signifique outra coisa que não o repisar simbólico dos que já não tem nada a perder (ou a ganhar) aqui. E também pode ser que se enganem os académicos e os cépticos, visto que o futuro não está escrito e todos os desenlaces serem possíveis quando se abre o baú dos processos e dos desejos, das ideias e das tácticas e enquanto se possa dizer: Que se foda se não pudermos vencer, talvez nos possamos vingar!. Este (e outros) “que se foda”, são aliás a única maneira de cortar com o presente, como o foram com outros Presentes passados, e de iniciar qualquer esboço de futuro aos que chegaram tarde de mais à festa da Democracia, do Mercado e do Estado Social europeus: isto é, nós. Ou devemos contentar-nos com os restos?

Seja como for, as acções contundentes e despidas de preconceitos formalistas (ou pelo menos de formalidades cidadanistas) praticadas pelos mineiros (e pelos que solidariamente se juntaram ao seu protesto), tiveram já o condão de arejar as bafientas e bizantinas discussões sobre o modo como se deve estar nas lutas - resistência pacifica vs acção directa violenta, etc – e deixar essa questão em aberto, para ser respondida com o que se pode e deve fazer nas ruas, e com as solidariedades mais ou menos (in)formais, que se formem a cada momento. Quando se desbrava esse território de falsas antinomias torna-se mais fácil – e não uma questão identitária entre “vândalos anarquistas” e “progressistas pacíficos”, por exemplo - que outros, menos afoitos e/ou experientes, mas igualmente dispostos a lutar pelo que lhes pertence, se organizem para lutar e disfrutar das lutas com os meios a que se dispuserem deitar mão, sem que se aliene necessariamente aqueles que por esta ou aquela razão jamais abandonarão a via exclusiva da “não-violência”: talvez assim nos possamos animar (e contagiar) reciprocamente, quer dizer, solidariamente.

É mais ou menos evidente que nas terras de Espanha, o “exemplo dos mineiros” está pelo menos a ter um efeito animador em quem está decidido (ou em vias de se decidir) a combater o capitalismo (ou mais timidamente a presente austeridade, o que é e não é o mesmo). Em Valência, trabalhadores ocuparam os estúdios de uma estação televisiva à hora de jantar o espectáculo da informação – experiência que já tinha sido realizada na Grécia – utilizando os meios espectaculares por excelência à disposição, invertendo-os para dar uma dose de realidade social aos espectadores (até que foram interrompidos pela emissão de um documentário, esperemos que igualmente pedagógico, sobre o fundo do mar). Em Madrid, após a manifestação oficial dos mineiros que realizaram uma marcha de protesto de centenas de quilómetros desde as suas regiões até à capital de Castela, milhares de pessoas – para dar continuidade e expressão, e prestar solidariedade, aos mineiros que regressavam a casa – mas também para impulsionar a sua própria (forma de) luta – recusaram-se a voltar para casa, e ficaram nas ruas, algumas combatendo a polícia anti-distúrbios, outros a fazer o que bem entenderam com as suas vozes e os seus corpos, rejeitando, todos, a ideia de que as manifestações tenham recolher obrigatório, ou que um dos objectivos das lutas sociais seja obter (das forças da ordem) medalhas de bom comportamento.

Longe de querer amalgamar vários protestos de origem e motivações diversas, que a qualquer hora veremos divergir pelas contradições existentes entre si, quer dizer, à medida que as lutas amadurecerem, isto é, se se conseguirem manter, e se possa verificar que estratégias se tornaram dominantes (ou que tiveram mais fôlego), gostaria de pensar que no seu conjunto, e neste momento, podemos constatar nestas lutas um movimento de unificação social, não no sentido teórico, identitário ou institucional (portanto da criação de um super-novíssimo movimento social), mas no sentido de um processo de convergência entre tácticas de luta operária radical e as aprendizagens feitas em tempos mais recentes (desde as primeiras movimentações alter-globalização, depois de Seattle a Génova, nos movimentos das acampadas e dos Occupy) de onde as recentes afinidades anti-capitalistas – por vezes à margem desses próprios movimentos e da sua retórica oficial – se começaram a querer levantar do chão, não porque são mais fixes do que as outras, mas porque os meios mais soft e mainstream se revelam todos os dias, senão de todo ineficazes, pelo menos tão ineficazes quanto as tácticas mais “violentas” que possamos considerar. Talvez essa síntese, se é que existe, nos possa demonstrar que não somos obrigados a permanecer petrificados em posições reformistas ou agarrados a plataformas de acção estritamente focadas na introdução de mudanças qualitativas no sistema social existente, pela via de tornar visíveis certas causas (ambientalismo, pacifismo etc); que se pode desenterrar o machado de guerra sem que isso signifique um impulso suicida recalcado, ou um fetiche bué macho pelo riot porn, ou uma afirmação sectária qualquer, mas uma prova de vida e um novo animo para a luta de classes: desta forma já libertada do lastro ideológico de uma narrativa emancipatória, que nas suas horas mais tristes não passa da glorificação do trabalho (por mais horrível que possa ser) ou da fé na “cidadania activa” (por mais pequeno-burguesa), e assente na própria Revolta posta em prática em toda a sua diversidade estratégica.

De como se auto-decapitar com um Corta-Relvas ou outros objectos pouco cortantes.

Em Lisboa e no Porto – e muito a contraciclo do que mais recentemente se tem aprendido em diversas “manifestações inorgânicas” (com e sem cargas policiais) nas ruas, nas ocupações da casa de São Lázaro e da Escola da Fontinha, das sucessivas imposturas policiais durante as pequenas greves que vão acontecendo, etc – representantes do civismo puro e sem gelo erguem-se para exigir a moralização da vida político-institucional da República (como se isso invertesse, ou ajudasse sequer, a alterar o rumo das políticas económicas vigentes e as suas consequências sociais, ou que iluminasse um palmo à frente dos nossos narizes a escuridão que temos à nossa frente); seja através de “acções de despejo” para ministros corruptos pontoadas por arremedos de ética e decência ou de barragens de petições a que se perde a conta; seja através de tentar cavalgar a mínima indignação desta e daquela figura publica integrada no actual regime/sistema. Longe de querer fazer juízos de intenção sobre o que move os dinamizadores dessas iniciativas, que deverá ser exactamente aquilo a que se propõem, o que preocupa é precisamente os que tomam parte delas imaginando-lhes poderes que visivelmente não têm, e que os próprios organizadores, julgo, não têm a audácia de preconizar.

Entendamo-nos, e não nos tomemos uns aos outros por parvos: já ninguém acredita sinceramente que os mecanismos legais/constitucionais estão em pleno funcionamento (mesmo sem fazer caso da sua função de controlo social, que também exercem), ou que, não estando, possam ser reactivados pelo mero exercitar das suas carcaças ocas, ou que se possa desmontar um governo (ou as suas políticas) peça-a-peça, como se fosse um motor velho. O que está em causa não é se somos ou não campeões da porrada com a bófia, ou pensar que alguém descobriu a fórmula certa de (re)activar as lutas sociais ou que tem no bolso esquerdo um pacote de soluções revolucionárias para tudo, mas que pessoas com pouca (alguma ou muita) experiência de activismo, actuem como se todos os meios tivessem o mesmo poder para dissolver o actual conformismo e para desenvolver com coerência uma resposta à altura do que os próprios consideram um ataque sem precedentes aos direitos e liberdades conquistados, ou o que resta deles.

Não resistir à tentação de tentar massificar mediaticamente os protestos, abdicando da sua radicalidade, nivelando o tom do protesto com o que se possa pensar ser um senso-comum de indignação latente, terá inevitavelmente o efeito contrário ao que se deseja. Desde logo porque é precisamente a radicalidade, e a diversidade do tom com que se protesta, que tem permitido o crescimento e a manutenção dos protestos mais fortes e consequentes que têm acontecido na Europa, e não o grau do seu bom senso, que tem dado oportunidade a uma radicalização posterior. O contrário disto é fazer-se passar por ingénuo ou tentar deliberadamente manipular uma indignação qualquer, federa-la ao mínimo pretexto e ganhar uma plateia onde despejar uma retórica que com sorte conquiste mais alguns adeptos, mas que em grande parte se torna duplamente desmoralizadora e desmobilizadora: afastando ao mesmo tempo os que julgavam estar perante algo de carácter moderado e reformista e aqueles que esperam, e querem mais, e que podem ser muitos mais do que muitos julgam (e que estão constantemente acossados pelos que os isolarão à primeira mijadela fora do penico): assim se gera desânimo e desconfiança recíprocos.

As manifestações tipo Corta-Relvas – do passado do presente e do futuro – sendo reactivas, estão à partida ultrapassadas pelos acontecimentos, porque servem apenas para moralizar a ordem social vigente a seu tempo (seja ela qual for) sem a interromperem, sem abrir caminhos, porque são facilmente recuperadas por ela, e porque não podem conter o descontentamento das camadas não-burguesas da população – económica e vitalmente fodidas muito para além das filhas-da-putice público-privadas deste ou daquele ministro, ou dos pontapés infligidos na democracia pelos seus próprios supostos ou impostos representantes. Isso desqualifica-as, ridiculariza-as ou retira-lhes legitimidade? Não. Apenas as torna exemplares de um activismo que reafirma a sua impotência e o seu curto alcance a cada ocasião; querendo crescer sozinho expandindo a sua moralidade. Que alguns que o sabem e que não desejam este simulacro, e outros rituais do género, pretendam ainda assim que se veja neles uma espécie de viagra da luta social realmente necessária, é que é pouco estimulante. Sem ironia, prefiro a ginástica, ou ver chover sindicalistas profissionais em cima dos automóveis dos ministros: às vezes chove.

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