Na celebração do nosso segundo aniversário, convém relembrar em jeito de balanço - e porque uma celebração é sempre uma renovação de votos e afirmação de vitalidade (mesmo que seja de alguém ou algo já desaparecido) - um motivo, que não o único, da nossa existência enquanto "grupo de artistas", seja lá o que isso for. "Seja lá isso o que for", exactamente, pois será aquilo que nós entendermos fazer dele, e fazer, claro está, de nós mesmos daqui para a frente.
Karlheinz Stockhausen (1928-2007)
Quando Stockhausen proferiu a sua célebre tese - já tão pisada e repisada que não é necessário citá-la, por agora, novamente - acerca da natureza "artística" do atentado terrorista levado a cabo a 11 de Setembro de 2001, que demoliu as torres do World Trade Center em Nova Iorque (juntamente com os corpos de quem se encontrava lá dentro e a bordo dos aviões), abriu, pensaram alguns precipitados, a caixa de pandora do terrorismo enquanto possibilidade expressiva e criativa/destrutiva, que muitos se apressaram a julgar e a cavalgar sem antes reflectirem com cuidado acerca das palavras do compositor alemão. Antes das naturais afirmações morais, isto é, da concordância ou discordância em relação a Stockhausen, importaria (e importou-nos) sublinhar e reter que esse acontecimento - e a análise deste feita pelo compositor - trazia algo de novo (que não a destruição e a morte, coisas antiquíssimas na arte e na vida, como é evidente,) à realidade: algo que os artistas, enquanto produtores e agentes transformadores da realidade, não podiam ignorar.
Cornel West
O filósofo americano, Cornel West, fazendo pairar sobre o mesmo acontecimento o espectro das lutas "afro-americanas", detectou a "negrização" da totalidade do povo americano. Essa negrização não é senão um sentimento de revolta generalizado perante o ter sido vitima de algo que escapa ao controlo, à compreensão, e ao poder que supostamente deveria defender ou representar a nação. "Todos" os estado-unidenses experimentavam agora a sensação que os negros - perseguidos social, económica e politicamente ao longo da história; escravizados; enjaulados num sistema prisional de dimensões incomparaveis; provavam há muito: a raiva. Era preciso ir atrás dos terroristas até aos confins da terra e destruir o que por lá mexesse. Esta "explosão social" , afinal uma indignação absolutamente razoável (que só terá equivalente na unanimidade anti-nipónica pós-pearl harbor) - indignação que nunca foi permitida, menos acentuadamente no conteúdo que na forma, aos negros na suas lutas por emancipação - mas pronta a ser servida através do exército mais poderoso e bem equipado da história. Afinal a violência podia ser justificada...desde que devidamente aconchegada na vontade imperial dos lideres políticos e militares (e dos cripto-poderes nas suas costas) e, neste caso específico, num presidente que nunca mais se esqueceu de evocar a sua condição de commander-in-chief - estabelecendo desde logo o "estado de excepção" em que o chefe militar ocupa (e nesse momento suprime) o lugar do homem representante da democracia e dos direitos sagrados constitucionalmente. "Exigências" da guerra...
George W. Bush
Pelo lado da estética, Stockhausen, disse apenas aquilo que compete a um compositor: verificar a magnitude da obra, a articulação dos diversos instrumentos e a orquestração magnifica dos atentados: nada que devesse espantar quem conhece minimamente a obra deste compositor.
Como é evidente, aquela frase reflecte uma tendência para a estetização absoluta da realidade e, enfim, da violência. Esse é realmente um ponto crítico, e criticável, da tese, mas que não é de modo algum um obstáculo inultrapassável. O recurso a um pouco de dialéctica é o bastante para colocar a questão num novo eixo e, simultaneamente, superar por um lado as "deficiências" da ideia do compositor e, pelo outro, a falta de ideias dos seus inflamados críticos.
Ora isto não é senão o seguinte: pegar na deriva stockhausiana - transformar um acto terrorista pleno em obra de arte total - e impôr-lhe uma segunda deriva, a saber, transmutar a obra de arte plena num acto terrorista total. Ou seja, a questão que finalmente devemos levantar não é se um acto terrorista pode, ou deve, ser considerado uma obra de arte, mas sim, pelo contrário, se uma obra de arte (pura e dura) pode ser um acto terrorista. Se sim, como?
É isto que, mal ou bem (e ainda muito embrionariamente), temos tentado, e continuaremos a tentar, fazer.
(continua)
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